Considerações que poderão ser úteis ao músico promissor

“Nada de grandioso se consegue da arte sem o entusiasmo”.
“Só compreenderás o espírito quando fores mestre da forma”.
“Jamais deixaremos de aprender”.
“Tudo o que vem com a moda se vai com ela, e se quiseres interpretar o que está na moda, ao envelhecer serás insuportável a todos e não serás estimado por ninguém”.
“Não divulgue jamais composições sem valor, ao contrário, com energia as suprima”.
“Toque sempre como se estivesse na presença de um mestre”.
Robert Schumann (1810-1856)
(“Conselhos aos jovens músicos”)

Recebi ultimamente um “questionário” de jovem pianista de reais méritos que desenvolve carreira bem acolhida na Europa, apesar das circunstâncias atuais voltadas ao gênero denominado clássico ou erudito. Tive o prazer de ouvi-lo a interpretar obras de envergadura e a impressão foi marcante.

Resguardando a sua identidade, entendo contudo que as suas considerações ensejaram reflexões que eventualmente poderão ser úteis a outros postulantes à difícil atividade, mas gratificante sob tantos aspectos.

A realidade da música de concerto, clássica ou erudita no hemisfério norte, no que concerne aos solistas ou cameristas, quando não antecedida por holofotes poderosos, obedece a uma dinâmica diferenciada. Sem as amarras do sistema até certo aspecto sufocante, se de um lado profissional o retorno mostra-se mais tímido, denodo e afeto à música, essências do engajamento, evidenciam-se na interpretação. Nessa situação se situa a maioria de excelentes instrumentistas não bafejados pela alta popularidade, mas sempre tendo a natural inclinação à qualidade interpretativa. Inexistiria, neste caso, o impactar através de artifícios virtuosísticos, como também extravagâncias de gestos e vestimentas ousadas, um todo completo a agradar imenso público cativo pelo planeta. Nem todos se submetem ao sistema, mesmo sendo extraordinários intérpretes. Quando das duas décadas gravando para o selo belga De Rode Pomp, tive o prazer de ouvir, nas temporadas em Gand, intérpretes admiráveis de vários países europeus que não viviam sob o jugo da luminosidade. Estou a me lembrar de um dos meus mestres em Paris, o notável e excelso pianista Jean Doyen (1907-1982), executante de um repertório imenso. Só de Concertos para piano e orquestra, respondendo a uma perguntei que formulei, respondeu com naturalidade ter tocado 67 obras do gênero! Vivendo com sua esposa e filha, não era afeito às grandes turnês ou aos holofotes.

Clique para ouvir, de Ravel, “Jeux d’eau”, na interpretação de Jean Doyen:

https://www.youtube.com/watch?v=3edsp-GoB8o&t=13s

O jovem pianista primeiramente considera o repertório e a afinidade por determinados compositores em detrimento de outros e apreciaria saber meu posicionamento.

JE – Não se puna em relação ao repertório. Considerando um compositor pelo qual a sua afinidade se mostra diminuta, aprofundar-se na literatura a ele dedicada e analisar uma ou mais obras poderão abrir a sua mente e a admiração pelas outras criações do autor possivelmente crescerá. É fundamental o conhecimento de estilos diferentes. Apesar de pouca afinidade com a obra de Johannes Brahms (1833-1897) – o notável compositor Fernando Lopes-Graça (1906-1994) dizia que a respeitava, mas não a amava -, estudei umas poucas composições do mestre alemão e compactuo com a opinião do mestre português.

J.P. - O que comentava no whatsapp é que desde adolescente tenho uma extrema dificuldade em tocar obras que sei que não quero tocar. Eu me esforço e não consigo, porque o meu “eu” é mais forte.

J.E. - O não gostar de determinadas obras pode ser motivo para o desconhecimento de outras criações de um compositor. Se estas forem visitadas, mesmo que através de uma leitura, o interesse pelas rejeitadas poderá surgir. Numa outra direção, entendo fundamental a análise prévia de uma composição. Quantas benfazejas “descobertas” podemos fazer!

J.P. – Uma vez o meu professor do conservatório quis que eu fosse a um concurso. Inscrevi-me, comecei a estudar todo o repertório, mas tinha que aprender uma composição… de que eu não gostava. O que acabou por acontecer foi que eu nunca estudava essa peça para a aula e uns dias antes do concurso decidiu-se que eu afinal não iria, claro, porque a obra não estava em condições. O mesmo se passou quando a minha professora bem anterior quis que eu tocasse o Gradus ad Parnassum de Debussy… eu nunca estudava a peça, até que ela desistiu. O professor com quem estudei a seguir acabou por me deixar sempre tocar o que eu quis, e eu andei feliz da vida todo o tempo em que estudei com ele. A certa altura sugeriu (muito afirmativamente) uma das grandes obras de Schumann. Toquei, para dar uma chance. Tentei perceber a obra. Levei-a ao recital final de Licenciatura. Tive uma falha de memória grande em pleno exame, que me fez saltar uma página. Nunca tinha tido uma falha tão grande. Estragou-me o resto do exame. Já gostava pouco e fiquei a gostar ainda menos da composição que sei importantíssima. Andei meses a sentir-me mal com este episódio, e deixou-me com complexos de memória, que era coisa que eu não tinha. Voltei a tocá-la mais tarde para fazer as pazes. Continuei sem gostar particularmente e da última vez que a toquei em público tive a mesma falha de memória. E pensei: para mim acabou. Depois fiz as pazes com Schumann com o Carnaval de Viena. Essa sim, foi uma obra que eu quis mesmo tocar e me deu muito gosto estudar. Se me dissessem que a ia tocar no mês que vem, ia já para o piano estudar.

J.E. – Primeiramente sobre a memória, estou a me lembrar de uma frase de um excelente pianista brasileiro, Jacques Klein (1930-1982). Em uma conversa que tivemos sobre a memória, afirmava que a falha “acontece nas melhores famílias”. Já as tive, não foram poucas ao longo de 70 anos. Assim como o extraordinário Sviatoslav Richter (1915-1997), que a partir de duas falhas de memória que considerou graves passou os últimos dez anos da existência tocando com a partitura à frente. Inútil dizer que, logicamente, as composições interpretadas estavam muito bem depositadas no seu de profundis. Sobre gostar ou não de determinadas peças ou de autores, há fatores originários: idiossincrasia pelo compositor, posição que tende a contaminar o todo, assim como a não afinidade por certa criação do autor. A sua rejeição a Debussy é personalíssima, prezado pianista. Tendo apresentado a integral para piano solo, piano a quatro mãos e a camerística completa, desde sempre me convenci de que o piano de Debussy é absolutamente singular. Desenvolve a busca sonora em seus extremos – apesar de 80% de sua obra estar entre as baixas e baixíssimas intensidades –, estimula o legato, o timbre, a arte da substituição dos dedos sobre uma determinada nota, entre tantas outras contribuições. Tantos mestres do passado já se pronunciaram a respeito, exaltando outras conquistas do autor da ópera Pelléas et Mélisande. Acredito que a sua contribuição foi decisiva na interpretação, uma verdadeira revolução sonora e conceitual. O grande mestre francês Jacques Février (1900-1979), com quem também estudei em Paris, intérprete das integrais de Debussy e Ravel para piano, dizia que “há mil e uma maneiras de se interpretar Debussy e uma só é errada, a de trair o seu estilo”.

Clique para ouvir, de Claude Debussy, as duas Arabesques, na interpretação de Jacques Février:

https://www.youtube.com/watch?v=748ETj88GpQ

JP -  Eu sei que devo ter obras grandes no repertório. Percebo a importância disso e faz todo o sentido. Mas Schumann (exceto o Carnaval de Viena) tem uma linguagem que eu não percebo. Não me sinto próximo, não me dá vontade de tocar. Não é que eu não goste, eu ouço às vezes em concertos. Só que não sinto conexão, não consigo fazer alguma coisa de especial. E por isso, prefiro não pegar.

J.E. – Maurice Beaufils, ilustre musicólogo francês, bem dizia que Schumann é o mais francês dos alemães e que a sua música vai diretamente ao coração. Creio que difere de Brahms, este, alemão por excelência, ligado à forma e a ter na escrita pianística uma visão orquestral. Se o piano de Brahms é pleno de “quase” uma redução da orquestra, onde os acordes têm presença marcante, Schumann é mais fluido. Não por acaso, Schumann penetrou logo no repertório dos franceses e a admiração por Brahms foi mais tardia. Considerem-se as edições URTEX, excelentes na exatidão das músicas, mas sem a posição explícita de grandes mestres do teclado, fundamental e que nos liga à tradição interpretativa. Se você tiver a oportunidade de adquirir as edições – não sei se existem novas – com análises profundas, poéticas, das obras de Chopin, Schumann e Liszt realizadas pelo notável Alfred Cortot (1877-1962), tenho a impressão de que terá uma outra posição quanto a Schumann. Digo o mesmo das edições das Sonatas de Beethoven por Arthur Schnabel (1882-1951). São preceitos imbuídos de análise poético-didáticas, distantes das análises estruturais, a jorrarem aquilo que o grande Guerra Junqueiro dizia: “A Música é poesia incorpórea”. Sob outro aspecto, creio que seu mestre tenha se equivocado quando lhe pediu para estudar em primeiro lugar uma das obras capitais de Schumann. Não se entra no universo poético-literário de Schumann pelas suas Grandes criações. Penetra-se nesse universo pelas Cenas Infantis, Blumenstüch, algumas Novelettes, peças da Fantasiestücke, o Carnaval de Viena para se chegar ao Carnaval op 9, às Sonatas, Kreisleriana, Humoresque, aos Estudos Sinfônicos, à Fantasia op.17 e, após ter conhecido alguns desses monumentos, às Cenas da Floresta, obra de uma fase de síntese do compositor.

J.P. – E Schubert… eu estava a tentar mentalizar-me. Estive a ouvir algumas sonatas e a pensar no esforço para penetrar naquele universo. Realmente um problema meu.

JE – Não se deve fazer esforço. Schubert poderá entrar na sua vida como a primavera para aqueles que amam as cores da natureza. Schubert é uma das fontes mais puras que jamais a Música conheceu. Penetrar no seu mundo límpido, transparente, necessita primeiramente que o intérprete se despoje de quaisquer preconceitos. Conheça alguns Improvisos opus 90 ou 142. Um portal que a fará penetrar num campo imenso, imaculado. Após os Improvisos, sugiro as últimas Sonatas ou, então, a monumental Wanderer-Fantasie.

No próximo blog, finalizarei as respostas ao posicionamento que me interessou muito, mercê das considerações tão bem expostas pelo jovem pianista. Pouquíssimos ousam extravasar dúvidas, incertezas, esperanças e escolhas. Na Arte em geral, é comum a existência de egos exacerbados. Na interpretação ainda mais, pois o aplauso do público carrega grau elevado de hipnotismo. Compete ao instrumentista não ser subjugado pelo canto das sereias, daí meu apreço pelo músico que não hesitou em escrever.

On a questionnaire received from a young pianist who would like to know my position on his choice of repertoire and personal affinity with certain composers over others.

 

Problemas similares

A Música é poesia incorpórea.
Guerra Junqueiro (1850-1923)

Após blog recente (Leitura e Leitura, 18/11/2023) e o último, nos quais abordo o quase “desprezo” das novas gerações pela literatura, alguns leitores fizeram associação com o que pode estar ocorrendo com a música clássica ou erudita em nosso país, assim como em vários centros europeus. É fato que em nosso solo houve uma profunda transformação, se considerada for a presença da música dita elitista em meados do século XX.

Se os conjuntos orquestrais continuam as suas trajetórias junto ao público específico, o mesmo não se pode dizer em relação à atividade solista ou camerística. Estou a me lembrar de que, na década de 1990, estávamos em Belém do Pará, hospedados no mesmo hotel, a notável e saudosa pianista Yara Bernette (1920-2002), o excelente violoncelista Antônio Lauro Del Claro e eu, pois participamos, em recitais distintos, de um Festival de Música. Bernette, que durante longos anos dirigiu a Escola Superior de Música e Arte Dramática de Hamburgo, a certa altura nos disse que o recital solo estava em pleno declínio na Alemanha e em outros países da Europa e que apenas aqueles precedidos por grande divulgação e holofotes poderosos ainda conseguiam plateias plenas. Essa revelação de impacto lenta e seguramente se abate sobre o Brasil.

Atendo-se à nossa cidade, tínhamos em São Paulo algumas salas que abrigavam recitais solos e camerísticos nas quais público interessado e numeroso se fazia presente. Os jovens intérpretes ocupavam espaços não apenas em recitais, como também junto às orquestras. Duas delas convidavam novéis talentos, a Orquestra da Rádio Gazeta, conduzida pelo Maestro Armando Belardi (concertos semanais transmitidos ao vivo pela Rádio) e a de Amadores, a ter como regente Léon Kanievsky. Uma plêiade de instrumentistas da nossa faixa etária se apresentava constantemente como solistas. As salas ficavam repletas de entusiasmados ouvintes e havia camaradagem entre os jovens músicos. Frise-se que, naquele período áureo de São Paulo, professores de piano fixados na cidade recebiam os alunos em suas moradas e são lembrados pelas capacidades insofismáveis e pela absoluta lhaneza: José Kliass (Rússia), Fritz Jank e Hans Bruch (Alemanha), Souza Lima e Dinorá de Carvalho (Brasil), como exemplos.

Entre as décadas de 1950-1960, a população da cidade de São Paulo, segundo o IBGE, saltou de 2.168.096 para 3.781.446, atingindo cerca de 12.330.000 em 2020. Inversamente, minguaram as apresentações solo de novos instrumentistas ao longo das décadas. No Brás, o Teatro Colombo, de boa dimensão, abrigava recitais de jovens nas programações patrocinadas pela Prefeitura, que organizava concursos semestrais e os vencedores se apresentavam naquele espaço acolhedor. Infelizmente pegou fogo em 1966. Havia outras salas na cidade que mantinham programação concorrida destinada aos novos talentos. O MASP mantinha intenso calendário sob a direção do Maestro Walter Lourenção. Lá me apresentei na década de 1970 inúmeras vezes e em 1982, interpretando em quatro recitais a integral para piano de Claude Debussy com a sala repleta. Recitais também eram oferecidos no Theatro Municipal, não apenas para os nomes referenciais no planeta, como para renomados intérpretes pátrios e novos talentos. Nos anos 1950-1960, integrais aconteciam. O notável pianista austríaco Friederich Gulda (1930-2000) interpretou as 32 Sonatas de Beethoven em oito récitas, e a extraordinária opera omnia foi, mais de uma vez, apresentada em São Paulo pelo ilustre pianista e professor Fritz Jank (1910-1970). Seria possível, hoje, a realização de extensos ciclos altamente didáticos como esses? Basicamente quase todos os recitais recebiam numeroso público. Sempre com o Theatro Municipal lotado. Recordo-me de que, em meados do século XX, quando um intérprete renomado se apresentava no TM, havia a juventude a formar fila para ocupar as galerias do Teatro centenário. Se daquele período áureo ao atual a população quintuplicou, sextuplicou, o mesmo não ocorreu no que tange ao número de solistas pátrios, assim como em relação ao número de salas destinadas aos recitais solo ou camerísticos. Há diversas na cidade, mas destinadas a várias atividades, inclusive a musical. Umas poucas apenas para recitais.

Salas que abrigavam temporadas anuais com intérpretes solistas ou de música de câmara foram desativadas para esse fim, sendo que a do Museu de Arte de São Paulo ou, mais recentemente, a do MuBE são exemplos. Subsistem, como resistência, espaços pequenos que mantêm a chama da esperança, onde jovens intérpretes e instrumentistas se apresentam para fiéis ouvintes. Quanto à nova geração de músicos, alguns talentosos a ela pertencentes buscam acima do equador horizontes mais propícios para o aperfeiçoamento.

Quanta verdade nas palavras da eminente professora, tradutora e escritora Aurora Bernardini inseridas no blog precedente: “O desinteresse pelo conhecimento humanístico empobrece a memória e empobrece a vida. Mas que luta convencer disso as novas gerações!”.

Ao longo dos blogs, que se prolongam desde Março de 2007, tenho frisado que várias são as razões da progressiva desarticulação da Música erudita. A indústria do entretenimento, a visar sempre ao lucro, não tem o menor interesse em promover intérpretes de música erudita, salvo exceções, não apenas pelo espaço restrito que o gênero ocupa na sociedade, mas também pelo público-alvo, constituído pela nova geração sempre em busca dos ídolos extremamente ventilados nos vários gêneros “musicais” que atraem multidões. A rápida transformação de hábitos e costumes, a fixação abusiva na telinha que altera comportamentos fixando nas mentes o efêmero, estariam entre outras motivações desaticuladoras.

Em várias oportunidades salientei através dos blogs a desativação da crítica voltada à Música clássica. Participei no ano de 2012 de um debate na Universidade Sorbonne, em Paris, a respeito da crítica musical, pois um palestrante comentou o seu progressivo desaparecimento na imprensa  parisiense, restrita basicamente online àquela altura. Lembrei que, nas décadas de 1950-1960, os principais jornais parisienses mantinham uma seção dedicada à crítica dos principais eventos e que o “Guide du Concert et du Disque”, hebdomadário, cobria grandes eventos e aqueles realizados nas pequenas salas, onde muitos jovens se apresentavam. Guardei os comentários sobre as minhas apresentações. Um grande estímulo. Eram vários os críticos especializados. Como curiosidade, menciono uma crítica publicada no Guide… referente a um recital que interpretei na École Normale de Musique (19/11/1960). Positiva, com algumas observações de ordem interpretativa. Dias após, recebo de um outro crítico do semanário, o musicólogo Michel Louvet, extensa consideração sobre o mesmo recital, a contrastar com as posições da colega, pois pensou ter sido o indicado para o mister. Absolutamente inusitada a situação. Dois críticos da mesma publicação em um mesmo evento!

São Paulo, naqueles decênios, teve uma crítica musical atuante e a lembrança dessa atividade se faz novamente presente. Em blogs bem anteriores, focalizando contextos outros, menciono o fato. O Estado de São Paulo, Folha de São Paulo, Folha da noite, Diário de São Paulo, Diário da Noite, O Tempo, Correio Paulistano, A Gazeta, Giornalli degli italiani, Jornal Alemão, Shopping News e a revista Anhembi mantinham críticos especializados que compareciam às muitas apresentações paulistanas, a maioria músicos atuantes ou professores de música. A cidade cresceu e a crítica musical constante, estimuladora… evaporou.

Verifica-se na Música o que se assiste na Literatura. Naquela, Conservatórios, que se dedicavam à Música erudita, de concerto ou clássica, encerraram as atividades e deram lugar a outros estabelecimentos, que maximizam a denominada música popular e suas ramificações, havendo menor espaço para a música clássica. Sob outra égide, os Departamentos de Música das Universidades recebem, para os cursos de instrumento, majoritariamente estudantes de música que se habilitam e se esforçam, mas pouquíssimos egressos dos bancos universitários seguirão carreira solo. A maioria encontrará nas orquestras a realização dos seus anseios ou se dedicarão à docência.

Livrarias fundamentais ou fecharam ou exibem preferencialmente livros que seduzem as novas gerações, mas cujos conteúdos são duvidosos qualitativamente. Músicos e literatos têm de recorrer às pequenas salas de concerto ou às editoras independentes, tantas destas últimas em luta permanente para a divulgação de suas obras.

O descaso pelo conhecimento humanístico poderia ser evidenciado nesses megashows que lotam estádios, onde milhares de jovens se extasiam com a parafernália visual e os altos decibéis. Ousaria vaticinar que, se no intervalo de uma “música”, uma voz ao megafone perguntasse: “quem já ouviu falar de Sócrates, Michelangelo, Bach, Beethoven, Cervantes ou Rodin?”, raríssimas mãos se ergueriam. Alguns se lembrariam do excelente jogador do Corinthians ou da série de filmes “As tartarugas Ninjas”, pois uma das quatro tartarugas, lamentavelmente leva o nome do imenso escultor e pintor italiano. Viria também à memória outro filme, “Beethoven, o Magnífico”, o cão da raça São Bernardo.

Nas duas atividades da cultura humanística autêntica, Música e Literatura, a Máquina que conduz eventos e publicações desconhece o valor incomensurável dessas culturas, e o propósito primeiro da sua engrenagem é apenas um, hélas: o lucro. Se acrescentarmos a Pintura, a arte contemporânea atual está atrelada a interesses que, igualmente, tem o ganho como meta essencial. Pouco a fazer.

Classical music and literature. Issues of current relevance and similar problems in today’s ephemeral world.

 

Leitores opinam e vaticinam

Temos, sobretudo, de aprender duas coisas:
aprender o extraordinário que é o mundo
e aprender a ser bastante largo por dentro,
para o mundo todo poder entrar.
Agostinho da Silva
(“Entrevista”)

O blog anterior suscitou posições saudosistas e outras expondo ceticismo quanto ao alcance atual da literatura específica destinada a adolescentes e jovens. Gerações de antanho foram atraídas por coleções ou livros avulsos com propósitos educacionais definidos. As muitas colocações dos leitores não deixaram de louvar as duas coleções, “O Thesouro da Juventude” e o “Mundo Pitoresco”, elogios esses vindos daqueles que acumulam muitas décadas.

Nos meus 85 anos, foram enormes as transformações experimentadas pela literatura para adolescentes e jovens dos meados do século XX e os da mesma faixa etária nos dias atuais. Outros são os interesses da maioria da juventude hodierna. As décadas que se sucederam pouco a pouco desviaram a atenção do conhecimento humanístico. Aceleradamente, após a internet, o aprender foi se tornando mais supérfluo, imediato e sucessivamente modificado, atendendo aos constantes avanços da tecnologia que, a cada passo, mais se distancia do legado literário-filosófico ditado pelos grandes mestres da Antiguidade ao século XX.

A superficialidade, irmã gêmea da brevidade das mensagens internéticas, não deixaria de penetrar no âmago de centenas de milhões que se prendem às telinhas para inteirar-se dos fatos de toda ordem e comunicar-se no cotidiano. “A pressa é inimiga da perfeição”, como se apregoava no passado, desvirtuou a língua, não apenas em termos do Brasil, mas em tantas outras terras, minimizou o pensamento, banalizou os costumes, atendo-se ao fugaz que não deixa traços, apenas prossegue em direção à paradoxal “sedimentação” da efemeridade, hélas.

O falar bem está a se estiolar. Em vários noticiários televisivos abundam os cacoetes; nos sites prolifera a inobservância do trato linguístico. Não teria sido a formação incompleta de determinados agentes da comunicação uma das causas?

Retorno à essência das mensagens que, em síntese, focalizou as leituras destinadas aos adolescentes e jovens nos meados do século XX.  Gildo Magalhães, ilustre professor titular aposentado da Universidade de São Paulo, aponta respectivamente para a formação décadas passadas: “É exatamente esta a sensação que você descreve que eu sinto também, ao folhear algo como o Tesouro da Juventude, ou até mesmo o Diccionario Lello, que meu pai tinha e me foi depois presenteado”. Lia-se muito e a memória retinha parcela considerável do conhecimento aprendido. A não menos notável professora titular aposentada da USP Aurora Bernardini observa com precisão: “É verdade. O desinteresse pelo conhecimento humanístico empobrece a memória e empobrece a vida. Mas que luta convencer disso as novas gerações!”

Como não me lembrar, em tempos bem remotos, da leitura dos livros de Monteiro Lobato (1892-1948)? Nos meus 10 ou 11 anos, percorri-os quase na totalidade e a turma do Sítio do Pica-pau Amarelo foi fundamental àquela altura. “História do mundo para crianças” (1933) levou-me primeiramente à leitura de “A Conquista da Terra”, de Wilhelm Treue (1909-1992), e à incrível “A Expedição Kon-Tiki”, de Thor Heyerdahl (1914-2002). O livro de Treue me foi extraordinário, pois de maneira didática o autor desvenda a epopeia do homem em suas conquistas e intrepidezes. Possivelmente  meu interesse pelas obras do aventureiro francês Sylvain Tesson (1972-) ao percorrer o planeta teria origem certa. São vários os blogs dedicados às suas andanças (Vide menu: Livros – Resenhas e comentários – lista). “Os doze trabalhos de Hércules” (1944) encaminhou-me aos vários livros sobre a mitologia grega. Esta, figuradamente personificada nas aventuras de Hércules, tendo os personagens do Sítio do Pica-pau Amarelo a acompanhá-lo numa “distância segura”, abriu-me a perspectiva de leituras sobre a Grécia Antiga, seus filósofos, artistas e escritores. As incursões posteriores aos livros percorridos na adolescência tiveram pois origem segura. Não seriam aquelas obras o peristilo basilar para aprofundamentos? Naquele longínquo período de formação, a leitura, paralela aos deveres escolares e aos estudos pianísticos, propiciou o descortino.

Rememoro uma coleção especial. Tratava-se de biografias resumidas em uma ou duas dezenas de páginas que destacavam, em cada livro particularizado, compositores, filósofos, pintores, escritores… Traduzidas do inglês para o português, tinham elas importância fundamental, não apenas com exemplos de vida dignificantes, mas também como referências culturais e humanísticas que substanciavam o conhecimento geral, indispensável em tantas decisões que o jovem daquele período tinha de tomar em relação ao futuro. Outras biografias em volumes individuais foram “consumidas”: Mozart, Bach, Beethoven, Aníbal Barca, Fernão de Magalhães, Napoleão, Churchill e tantas mais… Aquelas âncoras, em suas áreas específicas, eram sempre revisitadas e o conhecimento penetrava na memória. Paralelamente líamos os clássicos, pois nosso Pai insistia que “o estilo é o homem”, sempre a mencionar o conde de Buffon (1707-1788).

O escritor e poeta Flávio Amoreira, em crônica publicada em “A Tribuna” de Santos, escreve: “É sabido que a alta literatura é sempre pedagógica, é sabido que ler os clássicos nos modifica (quase sempre para melhor) por toda a vida, é sabido que ler é uma atividade insuperável em busca de autoconhecimento e é sabido que escolas, governos e pais têm feito pouco para motivar os jovens ao hábito sagrado da leitura” ( Novembro, 2023). Verdades absolutas.

O presente post, a rememorar leituras realizadas a mais de sete décadas, fez-me debruçar sobre a importância de um hábito salutar que, paradoxalmente, a alta tecnologia tende a sufocar. A extinção do objeto físico em relação à Música clássica ou erudita, LPs e CDs; e a banalização temática de livros à disposição, “marginalizando” a grande literatura, estão a provocar o já mencionado culto ao efêmero e, com ele, um futuro incerto.

Readers wrote about the collections “O Mundo Pitoresco” (The Picturesque World) and “O Thesouro da Juventude” (The Treasure of Youth) as well as other books that were fundamental in the formation of past generations, understanding that the habit of good reading is essential from adolescence and youth onwards.